
Foco e Autoridade
Por que obedecer à regra? À lei e à tradição? Já não superamos a superstição? Podemos abandonar a autoridade da nossa parentela? Devemos de fato recorrer à individualidade para tudo?
Este texto talvez tenha uma carga pessoal mais alta, mas venho por meio dele buscar minha própria cura também. Começou assim:
– Como desenvolver mais foco?
– O que você acha que é foco?
– Alta concentração. Determinação para dizer não para as distrações e boas ideias, para dizer sim às excelentes. É saber o que quer com clareza, é ter uma meta e ir atrás de cumpri-la.
– Reflita sobre isso, há uma forma mais madura de definir foco para você?
Nesse ponto, eu visualizei muitas coisas na minha cabeça. Em especial uma conversa que tive com uma pessoa importante para mim. Nessa ocasião, eu acabava de perceber que meu conceito de namoro estava errado, imaturo. Eu acreditava que em um relacionamento saudável não há invalidação da outra pessoa, que o respeito é absoluto e que o diálogo precisa ser feito quando há conflito. Até hoje penso nessa linha, mas na ocasião achamos uma pérola preciosa. Nem sempre isso acontece e continuar a acreditar nisso gera mais problemas e sofrimento. Eu precisava aceitar que sim, eu invalidaria ela, ela me invalidaria, haveria desequilíbrio e nem sempre seria possível dialogar com a profundidade necessária.
No meio da tensão, por um insight, vi de forma ampla a situação. Ao mudar de perspectiva, todo o peso sumiu. Meu tom mudou imediatamente, minha saúde psíquica estava alterada para melhor. O único preço a se pagar foi o abandono das minhas ideologias, que não serviam nesse caso. A insistência nessas ideias, de modo inflexível, especialmente estas que são importantes e não são tolas e irrefletidas, provocava sofrimento desnecessário. Eu entendi, que é justamente sobre as ideias que já aprofundamos e já refletimos a respeito, sobre temas importantes, que são as que mais precisamos ficar atentos e sermos flexíveis. É fácil desapegar de ideias banais, mas é difícil ter a atitude leve e desapegada frente ideias importantes e que já investimos muito esforço, pensamento e reflexão.
Para mim, diante da experiência concreta que estava tendo, ficou evidente que não estava funcionando. Uma ideologia, quando falha, precisa de revisão e não convencimento da outra parte. Já é difícil haver diálogo aberto sobre temas importantes, de fato entender o outro, falar seu ponto, e ambos sentirem-se ouvidos. Passamos por essa fase, mas ainda não havia síntese ou conclusão. Alguém tem que ceder?
Quem insiste nessas ideias, é você, ou seu filósofo favorito? Quem fala para insistir nessa atitude? É você, ou suas emoções e o orgulho? Ficou claro para mim, que dar uma chance, por apenas 1 segundo, para ver as coisas de um modo diferente, abre as portas de uma represa, e o novo fluxo movimenta o nosso lago parado.
Eu sentia tensão, dúvida e estava perdido. Eu já disse, de modo articulado, todos os motivos para pensar assim. Ela entendeu. Eu entendi de modo genuíno o ponto de vista dela, e porque ela acredita nele. Porque não nos convencemos? Porque não encontramos uma síntese conciliadora?
E então veio a resposta. O fato é que não está funcionando estas posições, a situação e seu estado interno provam isso. Há algo errado que você não viu, olhe pro terreno e não para o mapa. Um relacionamento saudável não é esse ideal que criou, e mesmo que sejam boas ideias, não é tudo. Abandone a ideologia, e ouse pensar por si mesmo, proponha sua visão diante desta realidade imediata que se apresenta.
Desprendido das minhas ideias favoritas, mesmo que rapidamente para testar uma alternativa, foi como experimentar adrenalina. Vi tudo claramente, aceitando fatos e vendo as imperfeições das minhas posições. Estamos nos sentindo assim, pois ignoramos que de fato acontece o que gostaríamos de evitar. Um bom relacionamento invalida também. Erramos sem intenção, mas os efeitos dos erros são reais. Rompa autoimagens e ideais, abandone ideologias e lide sinceramente com o relacionamento real.
Me senti inclusivo imediatamente, percebi e articulei o que percebi. Meu tom mudou, minha alegria era visível. A mudança voltou a fluir em mim, e reavaliando meus conceitos via quão rígido era. Vejo agora, quão fácil se cai em armadilhas especialmente nas coisas que mais investimos atenção em nossa vida.
Eu perseguia na época, com muito foco, flexibilidade psicológica e realismo. Queria acima de tudo, ser flexível. E quando você percebe sua inflexibilidade, não é agradável. Por sorte, eu já estava experimentando o desapego de minhas refinadas ideias. Tirá-las é difícil, por dois motivos.
Em primeiro lugar, nossos valores e ideias mais importantes, são como a água é para um peixe que nunca foi até a fronteira entre a água e o ar. É como descobrir o ar quando não está ventando. Estão tão próximos e internalizados em nós, que assumimos como fato incontestável. Mas e se, se exatamente nossa definição de valores for incorreta? Imatura?
Em segundo, investimos muita energia nessa identidade! Não é um valor, ou uma ideia, quando esta é uma ideologia, e aquele é um modo de ser que legitima tudo o que faz. Abandonar uma ideologia ou um valor, em verdade, apenas ousar questioná-los, é como ofender nosso autoconceito. É abalo estrutural da nossa psique.
Depois que reconheci a profundidade do meu apego e a localização do que precisava ser mudado em mim, falta a coragem para se despir psicologicamente e poder ser atingido sem proteção. Mas com quem estava, valeu a pena. É realmente amor, quando aceitamos mudar de perspectiva sobre algo importante.
Tudo isso, para dizer o simples: Amadurecer é mudar o estrutural, não o superficial e supérfluo.
De volta ao foco e sua definição. Percebi em primeiro lugar, que o foco era uma palavra que me definia visceralmente. Para mim ser uma pessoa é ser focado. O motivo de eu dar tamanho valor para a disciplina, a regra e a ordem é porque para mim é isso que torna uma pessoa digna de amor, de existir. Entendi que, em minhas camadas mais profundas, está instalada a rigidez. De pensar, de ser, de sentir. Tem hora para tudo, e se controle até chegar a sua hora.
Percebi que viver sob esses preceitos é impossível, e por isso, eu criei esquemas “invisíveis” para minha consciência, para sobreviver. O principal deles: Intelecção. Aprendi a questionar limites e autoridades, até as últimas consequências, para justificar minha preguiça, incapacidade e ímpeto por liberdade interna.
Minha relação com autoridade é péssima. Apesar de uma relação excelente com meus pais, eu percebo agora, claramente, quão difícil é para mim aceitar ordens, regras e leis. Minha criação foi de muita liberdade, vim em tempos de abundância e paz. A filosofia da minha família era mais profunda que todos podiam imaginar. Eu precisava aprender responsabilidade dentro da liberdade. A autoridade se fortalece, mais do que tudo, nas consequências da realidade.
Minha revolta foi tão profunda contra autoridades e limites, que passei 12 anos em rebelião contra Deus e a ideia de fé. Aprofundei intelectualmente em filosofia moral, religião e sofisticados conhecimentos sobre os limites da liberdade e da razão humana, com o intuito inconsciente de me justificar. Acima de tudo, o projeto da minha inconsciência era encontrar paz na liberdade indisciplinada.
“A lei não se aplica em mim. Nem Deus pode me julgar, Ele não existe. Apenas as consequências e os limites da própria realidade são respeitáveis. Não ouvirei regras arbitrárias, seja de autoridades que não sabem o porquê defendem fronteiras e regras – e portanto são meros repetidores de discursos prontos –, seja de autoridades impacientes para me explicar o motivo de seguir uma regra – pois sua impaciência significa ausência de sabedoria, e eu não obedecerei quem não seja sábio.”
Quantas barreiras para aceitar o valor da obediência. De fato, não acredito hoje, em obediência cega e surda, e no espírito, sou um rebelde criativo. Não obedeço regras idiotas. O problema de desafiar tradições, é que a responsabilidade da justificativa passa a ser do rebelde. É preciso entender a tradição profundamente para romper seu limite com consciência limpa. Para obedecer diretamente o espírito da lei, é preciso antes conhece-lo.
E no fim, percebi finalmente, que a autoridade última é a consequência da realidade e da natureza. É como a sociedade e as pessoas são, nesse tempo. É como a vida se configura no universo. Essas são as leis do tempo, da causalidade. Agir tem consequências profundas, muitas que sequer imaginamos e que só podem ser descobertas pela experiência. Nossos antepassados fizeram muito mais que mapas dos continentes, enfrentaram os dilemas da transformação interior humana.
Somente tendo a educação que tive em minha família, que pude encontrar o que meu espírito precisava para se curar da rebeldia intelectual justificadora, criada para contornar a verdade absoluta de que foco é ser, disciplina é legitimadora. No meu fundamento, eu precisava de cura da cruel ilusão da disciplina e do foco. Eu fui até onde precisava ir, e encontrei o tribunal da justiça. Eu tive experiência com a autoridade da realidade. Além da causalidade, dos ciclos de Karma.
Em primeiro lugar, minha mente infantil enfiou tanto significado nessa palavra… Vamos por partes. Foco não é um superpoder de concentração. Foco é uma palavra. E como descoberta tangente vi, quão importante é sermos simples ao atribuir significado às palavras. Inventamos tanto para fazer uma palavra dizer mais do que é. Voltemos ao foco.
Foco é simplesmente saber o que é realmente importante, o que realmente está relacionado ao objetivo, para cada vez que nos distrairmos, e isso vai acontecer, retornarmos ao caminho. Entendi que, assim como a ansiedade, o medo, o desejo, a tristeza, a alegria, fazem todos parte da experiência humana, também é assim com a distração. É fato que sentiremos toda a constelação de sentimentos e emoções humanas, teremos a experiência humana como ela é. Se além das dificuldades naturais, distorcermos o significado das palavras e nos prendermos à estes significados criados, andaremos por muitos desertos até um milagre nos salvar.
Não há como forçar um músculo ir além dos limites máximos, ele se rompe. Não adianta impor uma ideia sobre a realidade, esta última sempre vence. Não adianta insistir em mapas com o terreno na sua frente. O terreno é sua experiência completa!
Vamos nos distrair, não temos atenção ilimitada, não temos autocontrole pleno. Hoje, me curei de algo fundamental. Me curei da ilusão do foco e da rigidez da disciplina. Vejo quão fácil é acreditar em ideologias, especialmente as que de fato refletimos e investigamos. É muita prepotência e arrogância concluir sobre nós e a realidade após uma reflexão, mesmo várias.
É o paradoxo da flexibilidade psicológica, da sabedoria socrática. Aprender que o pouco que sabemos, também pode mudar, e que na verdade, nada sabemos.
Qualquer coisa que não estamos mudando, estamos escolhendo. Foco é a capacidade de manter uma opinião, é retornar após a distração, que não é má ou ruim. Distração é o mecanismo de exploração ao desconhecido, se fossemos apenas disciplinados e focados no caminho não conheceríamos nada além dele. Sem contraste, não há valor. Foco e disciplina são aliados, e são compatíveis com leveza e flexibilidade. Foco é o exemplo concreto da liberdade e da responsabilidade, unidas. A habilidade de retornar ao fluxo, sem revolta e respeitando limites e valores, é a chance que temos de determinar nosso curso. Foco é nosso remo, no fluxo da realidade. Aumenta a velocidade, direciona o destino.
Amigos, após esses pensamentos vejo que:
Quanto mais fundamentais são nossos conceitos, mais invisíveis eles são para nós e mais impactam o curso de nossas vidas e a natureza dos nossos sofrimentos.
Só nos apegamos de fato ao que é importante, só entramos em conflito quando importa. É fácil ser leve sobre o trivial e o superficial, mas é sobre o que é profundo que está a matéria-prima do amadurecimento.
O autoconceito mais admirado por ti, é tua maior fonte de apego. Revisa teus conceitos, sempre. A verdadeira flexibilidade e saúde psicológica está em reafirmar nossa ignorância sobre a realidade. De fato, precisamos de conceitos, limites e firmeza, mas é essencial a sabedoria na camada fundamental para escolher adentrar na ressurreição do nosso Ser.
Não é preciso ir até a autoridade da consequência para descobrir a relevância dos limites, da fé e do amor da tua parentela. Honrar aos pais, às tradições e às religiões com reverência é sinal de grandeza de espírito. A disposição de abraçar voluntariamente a ignorância e o limite pessoal, e se incluir no projeto conjunto da humanidade, te permitirá construir verdadeiro legado aos teus sucessores.
O espírito cresce com o desapego, com a reverência. Se há algo que aprendi hoje é que não devemos acreditar cegamente em nossos conceitos, não devemos insistir em subterfúgios. Devo realizar a genealogia de meus conflitos pessoais, ver minha dificuldade e meu limite pessoal de perto.
Relacione-se bem com seus conceitos, respeite a realidade, reverencie a autoridade. Foco, disciplina e respeito com a autoridade. Minha relação com essas palavras hoje amadurece.
Abraço!
P.S: Adoraria ler seus comentários!